quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

A BEM-AVENTURANÇA



Quando Jesus se assenta sobre o monte, como um novo Moisés recitando as tábuas da Lei, começa pela superabundância da vida, da saúde, da existência. Ele começa pela bem-aventurança – Não no plural, as bem-aventuranças, mas uma só com múltiplas facetas. Quem são esses bem-aventurados? Como é essa bem-aventurança? Essas questões se confundem. Talvez a pobreza de espírito seja fundamental, seja a condição de possibilidade do primeiro passo à bem-aventurança, e ao mesmo tempo, o resultado dela, o sintoma dela. E tudo mais que está dito aqui nesse “Sermão do Monte” sejam como manifestações e faces dessa pobreza de espírito fundamental. Talvez essa pobreza de espírito seja a condição do discipulado, o primeiro passo, mais ao mesmo tempo o último, e ao mesmo tempo o único, como se a vida inteira fosse esse passo, como se só existisse ele, e tudo mais fosse ele; todo aprendizado do discípulo fosse apenas em virtude desse passo. Muita confusão a respeito dessa expressão “pobres de espírito”. Lucas diz apenas “pobres”. Seria isso um incentivo a pobreza de subjetividade? - que é um dos sentidos da mesma expressão.

O pobre de espírito é aquele que não tem posses. Ele não tem riquezas. Ele não está garantido por nenhuma propriedade. Para Jesus, as riquezas são o inimigo do discipulado, da bem-aventurança, muito mais do que o diabo. É por causa dos cuidados e desejos por alguma posse que o coração torna-se duro e insensível à Palavra de Cristo, e nos tornamos indispostos ao nomadismo que caracteriza seus seguidores. Pobre de espírito é aquele que renunciou a tudo, que já não tem ligações naturais com coisa alguma no mundo. É o órfão de espírito, o isolado, o sem apoios. Frequentemente os desfavorecidos socialmente, os produtos execráveis de uma configuração social como a nossa, podem estar mais próximo dessa pobreza de espírito.

Mas essa situação existencial é uma constante. É uma condição inicial, mas também uma condição do próprio caminho - o próprio Caminho. Nada possuir. Perseverar na leveza. Continuar sem apoios fixos no mundo. Deixar tudo. É dos pobres o Reino de Deus! Ou seja, o que renuncia tudo, que deixa tudo, não ficará sem suporte, sem território existencial, sem posses, digamos – pois isso seria de fato aquela miséria da subjetividade a que nos referimos, seria o niilismo, seria o sujeito das religiões de desprezo a vida. O Reino de Deus pertence aos pobres. Quer dizer então que na própria pobreza habita a riqueza do Reino. Não se trata aqui nenhum pouco de teleologia, de um Reino de recompensa post mortem. Trata-se de uma recuperação íntima, uma devolução instantânea do mundo renovado, habitado pelo Reino de Deus. O Reino habita a própria pobreza como bem-aventurança. A bem-aventurança é o sintoma do Reino de Deus habitando o pobre. Não é a toa que os mansos, os mesmos pobres, herdarão a Terra. É a Terra inteira que é devolvida ao pobre, mas como não-dele, como não-riqueza, como não-posse. A Terra arrancada de sua condição de ídolo. A Terra como Reino de Deus. Paulo brada “Tudo é vosso, seja a vida, seja a morte...Tudo é vosso.”

Ora, mas a vontade de possessão talvez seja quase um sinônimo do “erro do alvo”; talvez seja quase o sinônimo da chamada “tendência pecaminosa”. Queremos possuir tudo, pessoas, riquezas, nossos próprios corpos, o fruto de nosso trabalho, tudo que herdamos de alguma maneira. Queremos garantir essas posses – passam a ser a condição de nossa existência, da nossa maneira de existir. Ora, todo desejo desesperado de posse é também um sedentarismo, uma raiz, uma recusa de andar, de caminhar, de aprender o espírito daquela bem-aventurança crística, o espírito de Jesus. É na verdade o fim do discipulado e da bem-aventurança. Existem mesmo ricos bem-aventurados?

O Reino como posse é uma existência transfigurada, que passa a iluminar o mundo e salgar a Terra. É o bem-aventurado, que se diferencia do religioso judeu e do religioso gentio. Ele é uma coisa nova, que escapa da tradição religiosa legalista do judeu e do modus vivendi dos gentios. O bem-aventurado existe num ambiente ameaçador, que o aborrece exatamente por causa de sua bem-aventurança, o perseguem, o caluniam por ele ter sede de justiça e anunciar a paz. Mas ele não se constitui como negação, como oposição odiosa. Sua conduta é marcada pela oração, amor e benevolência aos seus algozes. Afinal, o bem-aventurado quer sim a perfeição. Uma perfeição que não era a do religioso judaico, que cobiçava o cumprimento perfeito dos mandamentos, e para isso produzia outros mandamentos que garantissem o cumprimento daqueles. Também não eram os ideais apáticos dos gregos socráticos, beleza ideal, sabedoria ideal... Era a perfeição imitação do amor do Pai, que dá chuva aos justos e injustos. A perfeição que os identifica com o Pai. É preciso tornar-se filho do Pai que já é nosso! - eis o paradoxo da bem-aventurança. É preciso tornar-se o filho que já o somos! Identificar-se com o Pai amoroso, ser perfeito em amor.

O final do “Sermão do Monte”, é dos mais realistas, digamos. O bem-aventurado, que povoado por essa bem-aventurança escuta e pratica, bem longe de uma relação erudita com Cristo – a justiça dos escribas e dos fariseus – quer ir logo praticar o que aprende. Ele é inabalável, apesar da vida descarregar sobre ele o caos que lhe é intrínseco: temporais, ventanias, dilúvios. Ele enfrenta com equilíbrio o caos da vida. Os temporais, ventanias e dilúvios podem arrastar as riquezas (materiais e subjetivas) como fizeram com Jó, e ele sentirá toda a dor, chorará, sofrerá, mas não perderá o equilíbrio e a sanidade. Permanecerá firme, como um casa construída sobre a rocha. Pois o equilíbrio e a saúde é inseparável de trabalho sobre si mesmo, que se equipara à construção de uma casa sobre a rocha, em que se tem que cavar laboriosamente no duro alicerce; alicerce que é a razão de não ser devorado pelo caos da vida. Eis a bem-aventurança!

Al Duarte,

dezembro de 2011

2 comentários:

  1. Só parece que essa bem-aventurança é imposta pelos que oprimem e não por uma voluntariedade. A história mostra que bem poucos homens tiveram a coragem de buscar essa bem-aventurança que não é imposta pelos sistemas, mas que se fizeram "pobres" por livre e espontânea vontade. Aí entra o jovem rico, vende tudo que tens e vem! Até por que o pobre vai vender o que? Isso não quer dizer que é fácil está na condição de "pobre", mas se fazer "pobre" não o sendo. Eis aí a bem-aventurança! E quando falo pobre não me refiro apenas às posses terrenas, mas às posses intelectuais. Até por que tem pobre de posses terrenas mas "besta" do que muitos ricos.

    Um agrande abraço.

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