segunda-feira, 1 de agosto de 2011

COMENTÁRIOS DE JOÃO 14 OU, O QUANDO O ÚLTIMO ACERTA AS CONTAS COM O PENÚLTIMO

"Mostra-nos o Pai, e isso nos basta." Talvez seja preciso não ver esse pedido como algo pessoal, de Felipe, mas como expressão da perspectiva que os discípulos tinham de Jesus, de sua messianidade, uma revelação sobre suas maiores aspirações. Eles queriam ver Deus! Tinham a certeza de que Jesus os conduziria a essa experiência, algo extraordinário, uma visão de Deus, que a Lei e os Profetas mostravam como algo demasiado intenso e impossível; nem mesmo Moisés viu a Deus! "Ninguém pode ver a minha face e viver." diz a Escritura. Mas todos os profetas tiveram experiencias intensas de "visões de Deus" como vocação para a vida profética, e o que eram esses 12 senão chamados para essa maneira marginal de viver? "Mostra-nos o Pai..." Talvez achavam que lhes faltava algo similar, profundo, radical, místico. Sim, viram muitos milagres, mas talvez algo externo demais, que não lhes tocava muito profundamente. Será que cultivavam expectativas de algo mais extraordinário? "Mostra-nos o Pai, e isso nos basta."


A resposta de Jesus parece ser um tanto frustrante, denunciando que essa piedosa aspiração tinha algo de tolo, de incrédulo. "Há quanto tempo estou com vocês, Felipe, e você não me conhece? Quem vê a mim vê o Pai..." Equivocada estava a fé dos 12! Jesus não os conduziria a nenhuma experiência mística e extraordinária! As aspirações dos 12 deixavam de lado algo essencial, o que seria a espinha dorsal do advento messiânico, essência que não fora ensinada pela tradição, nem está tão clara na Lei e nos Profetas: Ele, Jesus é a expressão do Pai. Ele é a Palavra de Deus! Algo de tolo e de incrédulo no pedido de Felipe, aspiração que não nascia dessa certeza – Jesus é a expressão do Pai.


É um tanto cômico que isso seja uma conversa de despedida. Como um acerto de contas, como um colocar as cartas na mesa por já ter chegado a hora, como últimas lições. Jesus fala claramente quem é, e como quer ser sentido e percebido, crido. Qual o sentido desses 3 anos de comunhão? Se esse evangelho inicia com a afirmação de que o Verbo se fez carne, agora exprime qual é a concretude disso: Jesus existiu como Verbo; Jesus é o verbo de Deus. E ficou evidente de que os 12 viveram esses 3 anos passando de largo dessa verdade. Eles ainda não criam assim. Jesus ainda era uma tela que condensava suas aspirações, nele projetavam seus desejos, o interpretavam segundo a tradição deles. É uma tolice ver esse registro como fruto das aspirações dos discípulos projetadas num homem singular, mitificando-o, tornando-o algo maior do que de fato foi. Está mais para o inverso: isso é o testemunho das aspirações e mitos dos discípulos sendo confrontados por algo mais inassimilável, absurdo, paradoxal. É o testemunho da demolição dos mitos dos discípulos pela Palavra. Tem algo de acerto de contas. Há uma porta estreita e um caminho estreito. Deixem os mitos do lado de fora. Terão de deixar para trás essas maneiras fracas e carnais de entender, de crer. Ruptura com a tradição. Salto. Jesus não irá mostrar o Pai! Ele não satisfará essa satisfação tão piedosa e tão incrédula! É tolo dizer que Jesus nunca professou algo claro e nítido sobre sua messianidade, sobre como deveria ser a fé em sua messianidade. Eis agora suas "últimas palavras" , um anúncio claro. Uma claridade não sistemática, um tanto aforística, mas que quer esclarecer. Ele as profere, confrontando a idiotia de fé dos discípulos, confrontando a mentalidade moldada pela tradição deles.


Estou há tanto tempo com vocês e ainda não me conhecem, Felipe? Quem vê a mim vê o Pai, e como você diz: mostra-nos o Pai? Não credes...?


Confrontando a idiotia de fé dos discípulos. "Não credes...?". Agora que chegou o tempo, é hora de falar claramente sobre a maneira de crer, a maneira que toca quem Jesus diz ser. Crer que o messias é um grande rei, um grande profeta, alguém com grande consciência de Deus, e que "mostraria o Pai" não é suficiente, não toca a essência do advento messiânico. Emanuel! O Verbo se fez carne. "Quem vê a mim vê o Pai!... Não credes...?"


Então Jesus fala sobre a concretude de ser o Verbo de Deus.


Você não crê que eu estou no Pai e que o Pai está em mim? As palavras que eu digo a vocês não as digo de mim mesmo, mas o Pai que está em mim é que faz as obras...



Qual o sentido desses 3 anos de comunhão, de andanças, de acontecimentos? "As palavras que eu digo a vocês não as digo de mim mesmo...." Como quem diz: esqueçam que sou alguém iluminado, um profeta, um messias nos termos tradicionais. Não me tenham mais como uma personalidade irresistível, alguém que descobriu um segredo, um "Homem extraordinário", um "super-homem"! Pois as palavras que eu disse a vocês não saíram de alguma genialidade como em tantos outros na história... "O Pai que está em mim é que faz as obras". Tudo que foi dito e feito nesses 3 anos fluíram do Pai, brotaram do Pai, que "está em mim"! O sentido desses 3 anos é que tudo foi a Palavra de Deus, expressão do Pai. "Como você pode dizer: mostra-nos o Pai?"


É engraçado como Jesus nomeia suas palavras e feitos como "obras", "O pai que está em mim é que faz as obras"; unidade entre seus ensinos e suas obras, um único Verbo, obras de Deus. A grande bobagem dos admiradores sem fé é querer quebrar essa unidade, e fazer um recorte dos "ensinos", como que reconhecendo a genialidade em meio ao amontoado de irracionalidades religiosas. Jesus anuncia como os 12 deverão crer. De outro ponto de vista: por meio desse registro, os discípulos testemunham como criam em Jesus, como aprenderam a crer. Esses dois acontecimento estão intrincados de modo indissociável! Bobagem tentar fazer o recorte de uma pureza histórica, achar o primeiro entre o segundo. Bobagem supor que haja isso! Visto que temos diante de nós um testemunho de fé, destinado aos que partilham dessa fé. A fé no Verbo é um a priori que se descartado fará qualquer experimentação do testemunho descarrilar para a bobagem, idiotia do ponto de vista da fé. Na eloquente erudição da teologia liberal não faltou muita idiotia, muita besteira do ponto de vista crístico.


Jesus anuncia como os 12 deverão crer. Emanuel. Este é a expressão do Pai, a Palavra de Deus encarnada, a única revelação. Caminho, verdade e vida. Há quem professe a insondabilidade de Deus, a estupidez de tentar aprisioná-lo num livro sacro, numa religião, numa só cultura – não é possível que Deus esteja emparedado no judaísmo! Alguns, radicalizando, afirmam que a crença em Jesus como única revelação do Pai faz parte desse apoucamento de Deus. Ora, mais a afirmação de que Jesus é a única expressão do Pai é a mais elevada afirmação da insondabilidade de Deus! É dizer que não há outra maneira de apalpar, de experimentar e crer no Pai senão no Homem Jesus, sendo as crenças, símbolos, e produções religiosas e culturais disponíveis impotentes para penetrar o grande mistério. É uma bobagem, em nome da insondabilidade de Deus, querer instaurar certa democracia da revelação, distribuindo o status de revelação às crenças e produções religiosas de todas as nações – Deus livre! Ora, mas crer que símbolos e crenças disponíveis na cultura podem revelar Deus, não é ainda apoucá-lo, reduzir sua grandeza e insondabilidade, torná-lo ainda demasiado cognoscível? Diante da expressão do Pai em Jesus, que nos parece ser algo maior que revelações de Deus, tudo mais não passa de "sombras do que havia de vir"; sombras judaicas, sombras pagãs. Se as revelações de Deus no judaísmo não passavam de sombras, também as revelações de Deus nas nações são tão sombras quanto! Talvez se deva falar que a revelação do Pai seja algo radicalmente outro, bem Diferente das "revelações de Deus", os respingos da Sabedoria sobre as nações. Essas sombras parecem clamar pelo "desejado das nações", parecem só no Verbo achar o autêntico sentido, a concretude, assim como o Antigo Testamento; essas sombras, essas revelações de Deus se tornam penúltimas frente ao último, a expressão do Pai em Jesus! A fé em Jesus como a Palavra de Deus, não exige pensar assim?


O Verbo confronta a crença dos discípulos. E parece conclamar: creiam em mim, não mais como reza a tradição de vocês, não mais como aprenderam, segundo os ditames desse mundo. É preciso saltar. A mente crucificada. Não creiam mais que eu "mostrarei o Pai", mas que tenho sido expressão do Pai. Entre essas duas maneiras de crer há um abismo. O primeiro chão é ainda "segundo a tradição", é "conhecer segundo a carne", o "penúltimo". O chão do outro lado é a "porta e o caminho estreito", o "último". O "último" confronta o "penúltimo", a Palavra desafia as palavras dos discípulos, querendo "levar cativo o pensamento" deles. Jesus parece falar de um ponto de vista muito distante, diferente, alto demais. Fala como para comungar algo muito elevado, controverso, absurdo. Fala consciente da "fraqueza da carne" dos discípulos, de como são ainda meninos demais para crer, aceitar o que ele diz.


Tenho muito o que dizer... mas que ainda não podem suportar...


Ele parece estar falando numa língua estranha. A palavra dos discípulos, a idiotia de fé deles, retruca contra o Verbo, como que estrebuchando contra suas absurdidades.


"Como podemos saber o caminho se não sabemos para onde vais?...

Como há de se manifestar a nós e não ao mundo?..."


A idiotia de fé costuma ser bem problematizadora! Tal problematização não é mais do que nossas palavras em combate contra a Palavra.


Jesus não violenta a mente dos discípulos. Confronta-os sem violência. Ele não faz lavagem cerebral. Não sistematiza o pensamento, não o dispõe em seções lógicas para persuadir, não argumenta, não transpira para demolir as certezas dos discípulos, não torna sua palavra em ideia forte. "Ele não gritará, não contenderá, nem fará ouvir sua voz na praça" Disse Isaías. Ele parece proferir essas coisas sabendo da incapacidade dos discípulos de aceitar isso, experimentar isso, crer nisso. Teria de haver uma experiência mais intensa, mais profunda, com sua ausência e com o Espírito Santo para lhes fazer compreender o que professava. Sim, os 12 ainda não criam com clareza. Não criam que Jesus era a Palavra de Deus. Criam numa messianidade ainda por demais moldada pela tradição do tempo, significada por um desejo de rebelião nacionalista; uma fé por demais "conformada com o mundo". Mas eram acometidos de uma paixão, de algo que os tinha prendido, cativando seus inconscientes, seus corpos, seus desejos... algo que ia para além e aquém de seus fracos entendimentos. Uma elevada paixão os atava ao homem que lhes falava, ela os arrastaria para junto dele, para estar onde ele estivesse, o conduziria sempre à "sublimidade do seu conhecimento".


Seria preciso a ausência de Jesus – engraçado como a fé se plenifica com a ausência de Cristo! A fé só existe e só se faz necessária graças a uma ausência radical de Deus, de Cristo. A ausência é transfigurada em intensidade de presença pelo Espírito Santo, uma intensidade mais elevada do que aquela, a desses 3 anos. Seria preciso o Outro Consolador, o Espírito da Verdade para guiá-los como uma nuvem por esse deserto de ausência. Só nesse deserto, nessa saudade, nessa ausência se terá as condições para compreender essa língua estranha que agora lhes fala. "Levarei vocês ao deserto e falarei aos vossos corações", diria Oseias.


Quando Ele vier, então vocês saberão que estou no Pai, e vocês em mim, e eu em vocês...


Muita especulação estéril já foi dita sobre a Trindade e o Espírito Santo. Tudo poderia ser mais simples e pragmático: Não se pode experimentar a existência anunciada nessas poucas palavras sem as energias e iluminações do Espírito Santo. O Espírito é o que transfigura a ausência em condição de fé, quem penetra no "penúltimo" e o entranha no "último". É ele a Pulsão em direção ao Verbo encarnado. O Instinto que contra nossos instintos nos faz experimentar a liberdade, a sabedoria, a vida, a verdade que é a Palavra de Deus feita carne. Bem se poderia então ver as afirmações de que Jesus é a expressão do Pai como efeitos das pulsões do Espirito nos discípulos! E entender de uma maneira não dogmática quando João coloca isso como uma especie de critério para enxergar o Espirito: todo o que confessa que Jesus veio em carne procede do Espirito.


É o Espírito que faz nossas vísceras saborearem a verdade de que a essência de Jesus é o ser ele a expressão do Pai, Verbo de Deus; produzir outro sentido para Ele só é possível contra as pulsões do Espírito. O Espírito nos faz habitar no Verbo e faz o Verbo habitar em nós. Qual o sentido disso? Que os discípulos partilhariam da expressão do Pai no mundo. Que a comunhão dos discípulos seria revelação do Pai muito mais que de Deus; essa é a única "sucessão apostólica" de Jesus para os discípulos; eles seriam os sucessores, os portadores do Verbo de Deus na Terra; uma interação de existências cuja expressão seria a glória do Deus encarnado!


Al Duarte,


Julho de 2011


Maracanaú

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